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Professor de Língua Portuguesa, Literatura e Redação; especialista em Teoria e História Literária. Professor da rede municipal de ensino de Vitória da Conquista e da rede estadual de educação da Bahia.

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segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

O JOGO E A LITERATURA – UMA QUESTÃO DE EXPERIÊNCIA ESTÉTICA


Daniel dos Santos Andrade[1]
Marília Librandi Rocha[2]


O jogo como elemento lúdico, presente em todas as áreas

Johan Huizinga apresenta o jogo como um fenômeno fundamental da cultura, que se encontra presente na linguagem, no direito, na guerra, na ciência, na poesia, na filosofia e nas artes. O jogo como atividade lúdica seria, inclusive, anterior à cultura, pois também “os animais brincam tal como os homens” (HUIZINGA, 1938, p.3). O fato de bebês chegarem a gritar de prazer, de jogadores se deixarem possuir por sua paixão, de uma multidão ser levada ao delírio ao assistir a um jogo de futebol, diz Huizinga, demonstra a intensidade, o poder de fascinação e a capacidade de excitar que são essenciais ao jogo compreendido como “totalidade”.
                        Existem laços íntimos unindo o jogo e a beleza, visto que em suas formas mais complexas o jogo possui os “mais nobres dons de percepção estética” (HUIZINGA, 1938, p.10) disponibilizados ao homem: ritmo e harmonia, residindo nisto “seu caráter profundamente estético” (HUIZINGA, 1938, p.5). O autor estabelece como características do jogo: o fato de ser uma atividade voluntária e, portanto, ligada a uma livre escolha; de ser uma evasão da realidade para uma esfera de atividade temporária - uma espécie de intervalo na vida cotidiana, capaz de absorver o jogador de maneira intensa e total -; de ser isolado, isto é, distinto da vida “comum”; de ter limites de tempo e de espaço; de criar ordem e também ser ordem; e de propiciar o surgimento de grupos sociais que tendem a se diferenciar do restante da sociedade.
            Sobre a seriedade do jogo, Huizinga diz:

(...) o jogo autêntico e espontâneo também pode ser profundamente sério. O jogador pode entregar-se de corpo e alma ao jogo, e a consciência de tratar-se 'apenas' de um jogo pode passar para segundo plano. A alegria que está indissoluvelmente ligada ao jogo pode transformar-se, não só em tensão, mas também em arrebatamento. A frivolidade e o êxtase são os dois pólos que limitam o âmbito do jogo. (Id., ibid., p.24)

No seu livro, Huizinga estabelece relações entre o jogo e os campos da religião, do direito, da guerra e da política. No entanto, se nesses âmbitos o contato com o jogo anteriormente tão presente e importante foi sendo perdido, a função do poeta “continua situada na esfera lúdica em que nasceu” (Id., ibid., p.131). Para Huizinga, a idéia de que a poesia possua apenas uma função estética ou só possa ser explicada pela estética deve ser rejeitada, pois nas culturas arcaicas a poesia desempenhava uma função vital que era, simultaneamente, social e litúrgica. Como lembra Huizinga, o termo que designa o poeta arcaico é vates, que significa “possesso”, “inspirado por Deus”, “em transe”, cuja função sagrada e poética sempre esteve enraizada em uma forma lúdica: “Toda a poesia da Antigüidade é simultaneamente ritual, divertimento, arte, invenção de enigmas, doutrina, persuasão, feitiçaria, adivinhação, profecia e competição“ (Id., ibid., p.134).
Sobre o surgimento da poesia, Huizinga destaca que ela teria nascido durante o jogo e enquanto jogo, como competição, que, mesmo tendo um caráter sacro, se dava nos limites da extravagância, da alegria e do divertimento. Ele exemplifica com o pantum malaio, que, originalmente, era um jogo de perguntas e respostas e se tornou uma forma poética determinada semelhante ao hai-kai japonês. Aqui se pode fazer uma alusão ao “desafio”, empreendido pelos repentistas e poetas populares, principalmente no Nordeste do Brasil, que começa como um jogo, uma competição ou brincadeira entre repentistas e se reflete na literatura de cordel.
            Ainda sobre a origem da poesia, diz:

Toda poesia tem origem no jogo: o jogo sagrado do culto, o jogo festivo da corte amorosa, o jogo marcial da competição, o jogo combativo da emulação da troca e da invectiva, o jogo ligeiro do humor e da prontidão. (Id., ibid., p.143)

            Ele destaca que, sob qualquer forma que tenha chegado até nós, o mito, veículo mais adequado para as concepções do homem primitivo acerca do universo, sempre é poesia. Enquanto o mito é vivo, não há distinção entre jogo e sociedade. Entretanto, quando se torna mitologia, isto é, literatura, e esta é transmitida por uma cultura um tanto separada da primitiva como uma forma tradicional, passa a haver distinção entre o jogo e a seriedade.
            Huizinga estabelece uma analogia entre jogo e poesia:

(...) A ordenação rítmica ou simétrica da linguagem, a acentuação eficaz pela rima ou pela assonância, o disfarce deliberado do sentido, a construção sutil e artificial das frases, tudo isso poderia consistir-se em outras tantas manifestações do espírito lúdico. Não é de modo algum uma metáfora chamar à poesia, como fez Paul Valéry, um jogo com as palavras e a linguagem: é a pura e mais exata verdade. (Id., ibid., p.147)

            Grande parte da literatura tematiza a luta entre um herói e as adversidades que o cercam, assumindo, assim, uma temática de competição. Sob essa forma, a poesia arcaica é quase indistinguível da competição por enigmas, ao que Huizinga complementa:

(...) Uma é criadora de sabedoria, a outra de palavras belas. Ambas são dominadas por um sistema de regras de jogo que determinam o leque de idéias e símbolos a serem utilizados, sagrados ou poéticos, conforme for o caso; ambas pressupõem um círculo de iniciados que compreendem a linguagem utilizada. A validade de qualquer delas depende unicamente do fato de se conformarem com as regras do jogo. Só aquele que é capaz de falar a linguagem da arte recebe o título de poeta. (Id., ibid., p.148)

            Assim como no jogo, a finalidade do escritor, seja no mito ou na lírica, na tragédia ou na epopéia, nas lendas ou em um romance moderno, é “criar uma tensão” que provoque encantamento no leitor, tal qual o jogador numa partida de futebol, quando protagoniza um lance genial, por exemplo. A linguagem poética joga com as palavras põe-nas harmoniosamente ordenadas e incutidas de mistério.
            Ainda conforme Huizinga, dos três grandes gêneros literários: lírico, épico e dramático só o lírico, tomado em sentido amplo, permanece próximo do campo lúdico, onde todos se originaram. A sociedade helênica, segundo ele, estava tão impregnada do espírito lúdico que não se percebia esse espírito como uma entidade especial. Tanto a tragédia quanto a comédia surgiram do jogo sob o signo da competição e eram apresentadas na festa dedicada a Dionísio. Vários poetas competiam pelos prêmios e o público participava ativamente das apresentações, de maneira semelhante ao que acontece nos estádios de futebol. A época contemporânea trouxe uma modificação a esse cenário. Huizinga mostra que, no século XIX, grande parte dos elementos lúdicos de épocas anteriores foram perdidos.
O esporte, como elemento lúdico, diz Huizinga, começa a ganhar mais visibilidade e maior aceitação na contemporaneidade, sendo que na Idade Média só era permitido na medida em que contribuía para a educação aristocrática. Todavia, o alto grau de organização técnica e científica das atividades esportivas tem contribuído para uma crescente profissionalização deste, o que, segundo ele, compromete, de certa maneira, o seu caráter lúdico.

Genealogia histórica da literatura como “mídia”

Hans Ulrich Gumbrecht, em “A Mídia Literatura” (1998) apresenta o conceito de mídia e, em seguida, procede a uma discussão acerca da literatura como meio de comunicação. Segundo ele, “[...] os meios individuais de comunicação devem ser determinados pela convergência de um tipo sempre determinado de ‘presença à distância’ com um feixe sempre determinado de relações de asseveração.’” (GUMBRECHT, 1998, p. 298), isto é, a mídia aproxima objetos separados pela distância e estes atos estão ligados a suposições acerca da confiabilidade e da aplicabilidade do que foi tornado presente. Os leitores estabelecem, primeiramente, uma relação de intimidade com os autores, que seria resultado “da ausência, em ambos os lados, de interesses relevantes em termos de prática cotidiana”, por isso a relação entre autores e leitores pode ser caracterizada como um “pacto de magnanimidade” (GUMBRECHT, 1998, p. 299). Em segundo lugar, o leitor está propenso a suspender voluntariamente a descrença, não exigindo dos textos literários um sentido pragmático, mas aceitando entrar no jogo da ficcionalidade. Em terceiro lugar, o leitor atribui à literatura uma mais-valia e uma função de transgressividade ou subversividade.
Partindo da atualidade e voltando ao passado, o autor traça uma espécie de história da mídia “literatura”, que tem como ponto de partida a Idade Média, especificamente os textos produzidos no século XII e que chegaram até nós em manuscritos do fim da Idade Média. Nestes, a referência mais antiga pertence ao Duque da Aquitânia, Guilherme IX (1071-1127), que, segundo a historiografia latina, viveu em conflito com a Igreja, então detentora exclusiva da produção intelectual. Os textos de Guilherme IX transgrediam por dois motivos: exaltavam a sexualidade fora do casamento e eram produzidos fora dos limites da Igreja que institucionalizava a produção escrita. Analisando alguns poemas atribuídos ao Duque de Aquitânia, Gumbrecht avalia:

O que ocorria nos textos e nas situações envolvendo o texto era um jogo, muitas vezes um provocante jogo com fogo, um jogo que nobres privilegiados, como Guilherme de Aquitânia, davam-se ao luxo de realizar – mas nunca era a de seriedade religiosa ou cotidiana que se expunha realmente à crítica da moral eclesiástica. (GUMBRECHT, 1998, p.303)

Na maioria das canções atribuídas ao Duque da Aquitânia o canto dirige-se aos ouvintes como pessoas da família ou “‘companheiros’”, o que já manifesta “um gesto de familiaridade”, característico do que será a “mídia” literatura. Nestes textos, ainda, torna-se evidente, pela primeira vez, uma fórmula de “presença à distância”, pois neles encontra-se a indicação de que deveriam ser entregues por um mensageiro (ou um passarinho) à amada “que vive à distância do eu imanente ao texto, tornando presente, assim, o eu para a amada” (Id., ib., p.304). Assim, Gumbrecht conclui que nos textos do Duque da Aquitânia há

[...] referências à presença à distância, relativizações do compromisso textual, pretensões a uma mais valia textual fundamentada numa competência formal e - sobretudo – diversos gestos de transgressão, em suma, uma admirável gama de fenômenos que lembram a mídia ‘literatura’ na nossa época. (GUMBRECHT, 1998, p. 304).

Em seguida, Gumbrecht discorre sobre o que se propôs chamar de “[...] início da continuidade histórica da mídia ‘literatura’” (GUMBRECHT, 1998, p. 305), em virtude das grandes transformações em torno dos textos escritos provocadas com a institucionalização da imprensa na segunda metade do século XV:

A introdução da imprensa desaloja o corpo do escriba e o corpo do receptor da situação de comunicação midiática que se desenvolve em torno do livro moderno. Somente agora se impõe a figura do autor em relação à produção textual contemporânea – como uma concretização da subjetividade do início da época moderna (GUMBRECHT, 1998, p.305).

Nesse contexto, o autor aparece como “sujeito espiritual” e os leitores, cada vez mais anônimos, buscam recuperar a “intenção do autor” através da interpretação que busca os significados “profundos” do texto em detrimento da “superfície” da materialidade da escrita. A imprensa também apoiou a idéia de que os textos defrontam-se com “o mundo” e são reflexos dele. Nessas condições, “(..) a asseveração da referência ao mundo por parte dos autores e dos textos (...)” (GUMBRECHT, 1998a, p.307), passa a ter relevância para o leitor. Assim, diante dessa “asseveração”, abre-se espaço para a ficção, enquanto suspensão voluntária da descrença, o que possibilita um jogo entre leitor e autor ou entre o leitor e o texto.
Gumbrecht conceitua a “literatura” como meio de comunicação cristalizado no livro impresso, a partir do qual se estabelece entre os papéis do autor e do leitor solitários uma proximidade exclusivamente psíquica ou intelectual, e no qual está presente o pressuposto de que os textos são representações do mundo. Para ele, o momento em que a literatura mais se aproximou desse ideal foi o século XVIII, à época do Iluminismo, quando se concretizou a “‘presença à distância’”. Nessa época o romance epistolar foi o gênero literário que obteve um prestígio inimaginável. Esse, sobretudo, era altamente subjetivo, o que levava o leitor a produzir sentido sobre o que lia.
No século XIX, a “[...] incompatibilidade entre as posições de subjetividade e as reivindicações de objetividade [...]” (GUMBRECHT, 1998, p. 313) motivaram a “‘crise da representação’”, o que “[...] fundamenta a tese hegeliana do ‘fim do período da arte’ na produção artística ‘romântica’ cada vez mais subjetiva” (idem). Nesse contexto, a literatura realista tem como obsessão superar a crise da representação. Nesse momento, entende-se a literatura como “‘carente de função’”, mas com uma mais-valia específica associada à sua contribuição para a normatização da vida social e individual. Conforme Gumbrecht essa visão “[...] elevou a leitura literária à posição de uma quase-religião [...]” (GUMBRECHT, 1998, p. 314), e contribuiu para o surgimento de uma disciplina acadêmica voltada para o seu ensino. Nesse período, a literatura se torna um fenômeno de massa, ao mesmo tempo em que, por se esperar de todo texto literário um conteúdo e forma inéditos, este acaba por se distanciar da competência de grande parte dos leitores.
A literatura do início do século XX, na Europa e na América do Norte, pode ser considerada como resultado de diversas crises que foram gestadas na “mídia literatura” do século XIX, sendo que, depois de tantas inovações, “[...] um conjunto de escritores altamente influentes parece ter abandonado a esperança de reconquistar, com as técnicas discursivas específicas de seu meio, a possibilidade de representação do mundo” (GUMBRECHT, 1998, p. 316). Para os que ligam o conceito de arte à função de representação é o fim do período da arte. A função representativa do texto é dificultada ou até impossibilitada pelo método instaurado e, assim, no século XX, a literatura se torna um meio de comunicação excludente. Gumbrecht também acrescenta que foram introduzidos novos padrões de “presença à distância”, como o cinema e a televisão, com os quais o livro impresso dificilmente pode concorrer e traz à tona a questão da sobrevivência da mídia “literatura”.

O jogo esportivo como acontecimento estético

            Deste ponto em diante, abordaremos dois outros textos de Gumbrecht, bem como seu livro mais recente (Elogio da Beleza Atlética), os quais apresentam o esporte, especialmente o jogo, no futebol, como uma experiência estética.
            Conforme Gumbrecht, em “É apenas um jogo” (1998a), a literatura exerceu substancial importância na criação dos modernos esportes de espectador, mesmo considerada como seu “antipólo intelectual” (Id., ibid., p. 117). Ele acrescenta que, se não fosse a literatura, o hábito de tais esportes nem sequer existiria visto que este hábito visa compensar a dicotomia corpo/espírito institucionalizada. Segundo ele, daquilo que Huizinga destacou acerca dos conceitos de jogo, dois elementos se fazem presentes na literatura e no esporte: o distanciamento em relação ao mundo cotidiano e a existência de regras que determinam a sua execução.
            Gumbrecht analisa três critérios a fim do estabelecimento de distinções entre literatura e esporte: as proporções de “corpo” e “espírito” que estão envolvidas tanto na atividade literária quanto na esportiva; o nível de distanciamento entre um dado jogo e o mundo cotidiano; e as relações que existem entre jogadores e espectadores. Ele menciona:

A disseminação do livro impresso como meio de comunicação, desde o final do século XV, introduziu uma mudança estrutural que fez com que as formas comunicativas passassem a excluir o corpo tanto quanto possível. Foi só então que se formularam aqueles tipos de atos de fala que hoje são (mais ou menos) incluídos sob o conceito de “literatura”. (...) Em relação à literatura, um símbolo direto deste desenvolvimento foi a cortina do teatro, que era desconhecida na Idade Média. A cortina correspondeu a uma diferenciação marcada entre os papéis de autor e leitor, cujas ações seriam cada vez menos experimentadas como intercambiáveis. (GUMBRECHT, 1998a, p. 121)

Os acontecimentos nos séculos XVIII e XIX fizeram com que aquelas formas de jogos que destacavam o corpo e o espírito e vinham funcionando desde o início da modernidade, passassem à esfera do “lazer”, que se reflete em dois modos de comportamento: o “sério” e o “trivial”. No primeiro, “a literatura e o esporte são experimentados como formas de experiência subjetiva 'autêntica'” (Id., 1998a, p.122); no segundo, a participação do espectador passivo na literatura e no esporte se dá “à distância”. O primeiro tipo tem sido, durante os séculos XIX e XX, mais resistente às mudanças. Ele explica isso, dizendo que

As funções sociais que, durante os séculos XIX e XX, foram realizadas pela chamada “literatura trivial” e por certas formas de teatro (...) gradativamente se transferiram para espetáculos como as Variétés, os music halls, os filmes e os esportes de estádio. Essas formas trouxeram os corpos dos atores para o primeiro plano na indústria do entretenimento. (GUMBRECHT, 1998a, p.125)

Segundo Gumbrecht, no artigo “A Forma da Violência”, publicado no Jornal Folha de São Paulo, em 2001, alguns intelectuais advogam que os esportes “representam” algo diferente do que são, o que os torna um tipo de “performance” que pede uma “interpretação”. Também afirma que a questão do motivo pelo qual gostamos de esportes é um desafio para os intelectuais por dois motivos: não saberem as respostas e o fato de o esporte ter tomado dimensões difíceis de serem analisadas. Para ele:

Levar esportes a sério como um fenômeno estético pode tornar conscientes a nós, intelectuais, de como têm sido inertes nossas conjeturas sobre os locais sociais da beleza. Sim, todos esses fenômenos culturais cujas “mortes” têm sido prematuramente anunciadas pelo humor pós-moderno, todas essas coisas oficialmente maravilhosas como livros, ópera, pintura ou balé, ainda estão vivas. No entanto é lícito dizer que não há outro fenômeno na cultura contemporânea que leve o prazer da beleza a mais gente do que os esportes. (GUMBRECHT, 2001)

O ponto de partida das discussões acerca da estética consiste na chamada “competência” dos fãs para analisarem um jogo como feio ou belo a despeito do seu placar, embora não saibam dizer em quais conceitos ou critérios se basearam para julgá-lo. Para tanto, Gumbrecht recorre à noção de Kant acerca da especificidade do juízo estético, que “(...) repousa justamente em sua capacidade de produzir consenso baseado num juízo que não tem consciência de seus próprios critérios e conceitos (...)” (GUMBRECHT, 2001). É o “prazer livre de interesse” segundo Kant, que foi descrito pelos filósofos depois dele como “autonomia e insularidade da arte”. Isto se torna evidente, no caso dos esportes, na própria arquitetura dos estádios construídos nos centros das cidades como espaços que voltam as costas ao mundo cotidiano, livre de nossas preocupações diárias, e se voltam para o espaço interno, para uma esfera que, “(...) pela sua simples separação, começa a estimular o desejo” (GUMBRECHT, 2001).
Gumbrecht ainda chama a atenção para a “violência potencial” que um jogador desempenha contra outro, que se esquiva dos golpes e confere ao fato um tom cômico, que ele exemplifica com o jogador de futebol brasileiro Mané Garrincha, que se esquivava dos adversários com uma performance surpreendente. O lance violento no futebol não é apreciado pelos torcedores, mas o seu efeito contrário (o que Garrincha fazia) leva a torcida à epifania.

Desafios contemporâneos: a “experiência estética” e o jogo esportivo. Uma leitura de Elogio da Beleza Atlética

O livro Elogio da Beleza Atlética (In Praise of Athletic Beauty) é uma ampliação das discussões já apresentadas por Gumbrecht em outros trabalhos, das quais algumas já apresentamos aqui. O teórico propõe uma reflexão acerca da capacidade que os esportes têm de “capturar”, irresistivelmente, a atenção e a imaginação de quase todas as pessoas no mundo cotidiano e menciona o poder de transfiguração, presente nestes, em função da não racional atração que exerce sobre os espectadores no mundo inteiro.
Fazendo uma aproximação, que ele chama de simplificadora, mas não exagerada, Gumbrecht menciona como originadora da poesia européia, as odes de Píndaro, que elogiavam os atletas:

O entusiasmo religioso e a autocelebração cultural são temas dominantes no elogio pindárico aos atletas do século V a.C. Tal postura, tão distante das emoções que hoje preenchem os eventos esportivos, torna difícil entender seus hinos. Mas não há dúvida de que o poeta queria criar a imagem mais monumental que sua língua fosse capaz de produzir daqueles maravilhosos corredores e pilotos de carruagem, daqueles boxeadores e lutadores imbatíveis. (GUMBRECHT, 2007, p. 26)

Apesar disso, Gumbrecht diz que, com exceção dos discursos da cobertura esportiva ao vivo, os demais tendem a depreciar os esportes ou diminuir as conquistas dos atletas. No entanto, ele cita uma expressão popular alemã como uma das caracterizações mais positivas a respeito dos esportes: “a ‘mais bela marginalidade da vida’” (Id., ibid., p. 27). À esta questão, ele propõe:

“Marginalidade”, aqui, não se refere exclusivamente à ausência de funções práticas do esporte em nosso cotidiano. A literatura, a música clássica e as artes visuais têm a mesma ausência, mas ninguém se atreveria a chamar as sinfonias de Beethoven, as odes de Keats ou os afrescos de Giotto de marginais. (Id., ibid., p. 27)

            Gumbrecht também discorre sobre o posicionamento dos intelectuais, destacando que muitos têm visões indesejáveis e preconceituosas a respeito dos esportes, vendo sua imensa popularidade como sinônimo de decadência ou, no mínimo, alienação. Ele ainda diz que os negativistas têm evocado as Olimpíadas de 1936, na Alemanha nazista, para argumentar que o esporte sirva como instrumento de manipulação política, argumento que cai por terra quando se cita que, na mesma olimpíada, Adolf Hitler viu, presencialmente, a ascensão de atletas afroamericanos à excelência internacional – exemplo disso foi Jesse Owens – .
Ainda de acordo com Gumbrecht, grande parte dos intelectuais entende, de forma depreciativa, que a grande atração que os esportes exercem sobre os espectadores se dá em virtude de que “os perdedores na vida adoram identificar-se com os ganhadores nos estádios” e o fato de vibrarem ao assistir aos jogos seria uma forma de descarregar as pressões das frustrações. Outros relacionam a ação do espectador com uma tendência de competitividade geral que tem invadido a sociedade moderna. Estes supostos intelectuais restringem a experiência estética a um conjunto limitado de objetos e situações canonizadas por eles mesmos. O fato de os esportes atraírem a atenção de bilhões de pessoas não faz com que os oficialmente cultos reconheçam que aqueles ativem a experiência estética.
No mínimo, continua, os cientistas sociais e humanistas falam que os esportes são algo diferente do que parecem. Dentre eles, o autor destaca a opinião do antropólogo francês Roger Caillois, que os aproximam ao sagrado e, como todos os jogos, se distanciam da vida cotidiana.
A respeito disso, prossegue Gumbrecht:

Essa desconexão em relação ao cotidiano é o que alguns filósofos descrevem, desde o fim do século, como a autonomia ou a insularidade da experiência estética. Eu me atreveria até a afirmar que mesmo os atletas que claramente têm um objetivo em jogo – amadores que querem ser contratados por um time profissional, por exemplo, ou competidores olímpicos que querem conquistar patrocínios, ou jogadores profissionais cujo valor no mercado depende de seu desempenho – esquecem esses interesses externos no meio do jogo ou da competição. Embora o dinheiro possa ser uma motivação forte, durante um jogo tenso Ronaldinho Gaúcho não pensa em seu contrato multimilionário na hora de bater um pênalti. Nem os grandes fundistas africanos terminam suas maratonas com tenacidade e elegância incomparáveis porque querem deixar a ameaça da pobreza para trás. Muito pelo contrário, sabemos que o fato de ser capaz de deixar de lado tais preocupações objetivas durante o desempenho atlético é um componente importante da competência dos esportistas e uma precondição básica para seu sucesso. (Id., ibid., p. 38)

            Gumbrecht brinca com o fato de que, devido ao esporte, atualmente, não ser um objeto canonizado, como o era na Grécia Antiga, qualquer forma de elogio, por parte dos que ele cita como “guardiões da alta cultura”, tem se tornado imprópria. Além disso, os intelectuais se sentem obrigados, pelo legado do Iluminismo, a ser “críticos”, sempre “críticos”.
Ao invés de ler os esportes como manifestação de alguma outra coisa, Gumbrecht diz que em seu “elogio” estará concentrado nos corpos dos atletas e, refletindo se observará os esportes a partir do ângulo do atleta ou do espectador, justifica que, em virtude de sua incompetência para a prática esportiva e à sua paixão pela observação dos mesmos, ele segue a segunda possibilidade. Assim, seu livro se dá a partir de uma visão unilateral: a do prazer do espectador esportivo.
Ele admite que não será capaz de responder o porquê da preocupação com o elogio da beleza atlética, e que, certamente, não compartilha das razões, sejam elas religiosas, políticas e até econômicas, que levaram Píndaro a fazê-la. Relembra, também, Aristóteles, quando diz que o elogio não tinha uma função específica, mas servia, tão somente, para atribuir beleza e importância às coisas elogiadas, além de dizer que, secretamente, tem produzido com a análise, um novo gênero epidítico, ao elogiar as diversas classes de esportes.
Para falar acerca do prazer em observar os esportes, Gumbrecht recorre às idéias do filósofo Inmanuel Kant. A partir das implicações do uso da palavra “belo”, Kant propôs a análise da experiência estética, em Crítica do Juízo, mencionando que o conceito de beleza está baseado na forma como julgamos as coisas, por mera contemplação, como “juízo de gosto”. Segundo Gumbrecht, quando Kant se refere à palavra “belo” como “juízo de gosto”, ele se refere à maneira como contemplamos a coisa. Tal juízo se refere à satisfação sem qualquer interesse, uma satisfação sem utilidade objetiva para a vida, mas capaz de nos deixar felizes com o vivido. É como dizer: meu time não vai me dar nada com sua vitória, mas a alegria de vivenciá-la me trará felicidade. Em suma: o que se ganha não é nada de concreto, mas abstrato e, por isso, só pode ser experimentado individualmente.
Ainda conforme Kant, a afirmação de que algo seja belo ou não depende de um sentimento individual de prazer ou de dor. Assim, é uma impressão subjetiva e não pode ser testada empiricamente.       
Mencionando o depoimento de Pablo Morales, um atleta americano, ganhador de medalhas de ouro nas olimpíadas de 1984 e 1992, sobre a sua experiência estética com o esporte, Gumbrecht destaca a característica de que tanto o atleta quanto o espectador deve estar “perdido” em estado de “concentração”, desinteressado das outras coisas. Assim, o espectador focaliza determinado atleta – que, também, está concentrado, ao máximo – , esperando dele, a qualquer momento, algo que aparecerá num breve instante e se perderá para sempre, a menos que captado pelas câmeras e repetidos em gravações, mas sem o prazer da presença corpórea. Este evento que surge e desaparece, num breve momento, na experiência atlética é chamado, pelo autor, de “epifania”.

Essa aparição inesperada de um corpo no espaço, que de repente assume uma bela forma que se dissolve de maneira tão rápida e irreversível, pode ser encarada como uma espécie de epifania. Essas epifanias, acredito, são a fonte da alegria que sentimos ao assistir a um evento esportivo, e elas marcam a intensidade de nossa resposta estética. (Id., ibid., p. 46)

            Gumbrecht pergunta-se sobre o que o desempenho dos atletas possui de específico que seja capaz de explicar a atração exercida por eles. Ele justifica que esta pergunta é mais ligada à perspectiva do espectador que à essência dos esportes. A isto, começa pela exposição do conceito de performance, ressaltando as incoerências das conceituações mais recentes sobre o mesmo. A respeito desse conceito, ele diz: “proponho que chamemos qualquer movimento do corpo humano de performance, desde que o enxerguemos, predominantemente, da dimensão da presença.” (Id., ibid., p. 55) Assim, dentro de uma quase infinidade de modos de performances esportivas, Gumbrecht indaga a respeito do que haveria de tão específico nelas. A fim de responder a seu questionamento, o autor nos remete a dois conceitos da Grécia Antiga: agon e areté. O primeiro, traduzido como competição, está ligado à domesticação de confrontos por meio de regras específicas. O segundo, se traduz como a luta pela excelência, corresponde a levar uma performance a seus limites possíveis, individuais ou coletivos.
Sem excluir o agon, Gumbrecht menciona o areté como o dominante numa performance atlética, visto que a luta pela excelência pressupõe uma competição (mesmo contra ausentes, no caso dos esportes de performance individual), enquanto que o contrário não se dá. Outrossim, a consideração do agon como mais importante corresponderia à visão depreciativa que muitos têm dos esportes. Além disso, os espectadores preferem ver seus atletas se doando ao máximo, chegando ao limite físico e não apenas competindo. Eles desejam ver atuando aos que consideram os melhores atletas – uma evidência de que o que mais apreciam não é só o resultado, mas a beleza do evento. Nas palavras do autor:

Se eu fosse fazer um elogio mais à competição que à excelência, confirmaria uma visão sobre o esporte que lhe rendeu sua má reputação entre tantos intelectuais. É a imagem dos atletas e dos torcedores como um bando de neuróticos roedores de unhas, movidos a ansiedade, viciados numa competitividade pontilhada de capitalismo e moldados pelo estresse que tal competitividade supostamente produz. A busca pela excelência e a colocação dos limites à prova, porém, eliminam todas essas associações negativas e projetam uma visão muito mais nobre – ou pelo menos bem menos condescendente – do esporte. (Id., ibid., p. 57)

            Contudo, o agon não é excluído. A presença de regras nos diferentes tipos de esportes é o que confirma a insularidade que os separa do mundo cotidiano. A observação ao cumprimento de tais regras, que não têm qualquer utilidade para o mundo cotidiano, faz com que muitos atletas e torcedores se percam em intensidade de concentração. Além do mais, pontua o autor, a competição gera drama:

A chance de vencer e o risco da derrota produzem uma narrativa, um sentido épico e um drama. E, embora o intenso desejo de vitória certamente motive os atletas a participar de uma competição e os torcedores a torcer por eles, acredito que a motivação da vitória vem sendo superestimada (...) (Id., ibid., p. 61)

            Segundo o autor, o impacto proporcionado por um evento esportivo nos torcedores vai mais além da simples alegria ou tristeza momentânea, proporcionada, por exemplo, pelo resultado de uma partida: faz com que aquela vitória ou derrota seja lembrada, por eles, como um momento dramático, cujos corpos e movimentos ficarão para sempre guardados em suas mentes.
Sobre a relação entre o esporte e a literatura, Gumbrecht apresenta um histórico dos esportes, remotando aos jogos olímpicos na Grécia Antiga, nos quais centenas de atletas e milhares de espectadores, a cada quatro anos, durante vários séculos (776 a.C. a 394 d.C., aproximadamente) passavam cerca de cinco dias no mais famoso santuário de Zeus, em Olímpia. Nesse contexto, as odes de Píndaro surgem não para descrever a performance dos atletas, mas os momentos de intensa alegria e orgulho, decorrentes das vitórias olímpicas, vivenciadas pelos que até aquele lugar concorriam, a fim de estarem diante da presença física daqueles que eram, por suas proezas, dignos de reverência e, por isso mesmo, elevados ao status de semi-deuses, além de estarem na presença dos deuses, que se supunha presentes em lugares específicos, de maneira mais intensa, como, no caso, o próprio local dos eventos esportivos.
Pensando na questão da experiência estética, Gumbrecht propõe mais uma indagação, a saber:

Se um número cada vez maior de modalidades esportivas chega ao limite do desempenho humano, onde quer que esse ponto esteja, será que nosso interesse como entusiastas ainda vai ser mantido pelo apelo estético da performance dos atletas, em vez de pelos recordes quantitativos que eles não conseguirão mais quebrar? (Id., ibid., p. 107)

            Quando se menciona o esporte como objeto de prazer, pontua Gumbrecht, em primeiro plano estarão não os aspectos referentes ao agon, como competição, mas os referentes ao areté, fazendo com que os espectadores se concentrem especificamente na possibilidade de rompimento de marcas, por parte dos atletas. Os movimentos do corpo (performance), percebidos e julgados, pelos espectadores, são o objeto da experiência estética nos esportes. Esta experiência estética, colocada entre a performance e o juízo estético, é conceituada como “fascinação”. O que os espectadores desejam ver, além do gol, do drible, da corrida etc, é a beleza do jogo, aquilo que é potencialmente capaz de gerar epifania:

(…) assistir a esportes é uma forma de esperar aquilo que pode acontecer, mas nunca é garantido que aconteça, porque fica acima dos limites precalculados da performance humana. Deixar acontecer e ver acontecer, às vezes, aquilo que não temos o direito de esperar – esse pode muito bem ser o tipo de experiência para a qual nós, fãs, estamos abertos quando assistimos a esportes. (Id., ibid., p. 162)

Gumbrecht identifica, nos torcedores, duas atitudes em relação ao que assistem: atitude apolínea e atitude dionisíaca, distinção feita por Friedrich Nietzsche. O espectador apolíneo é caracterizado como aquele que, à distância, aprecia a beleza do evento, é analítico. Em contrapartida, o dionisíaco deixa de lado a individualidade e a distância, para entrar em estado de comunhão, tanto com os demais espectadores quanto com a energia presente na ação observada. Segundo Gumbrecht, tal distinção, proposta por Nietzsche, entre espectador “analítico” e espectador “orientado à comunhão”, marcam extremos de um contínuo de possibilidades de atitudes. Os que estão mais à ponta, na parte dos dionisíacos, estão mais propensos a se tornarem impregnados com o ar de competição e chegarem a praticar atitudes condenáveis de violência física.
Concluindo o livro, Gumbrecht apresenta uma definição, formulada por Martin Seel, sobre o que é o ter prazer com os esportes e que possa ser uma maneira de explicar a atração despertada pelos esportes: “‘Quando assistimos a esportes, gozamos, em nossa imaginação, de vidas que jamais teríamos talento ou tempo para viver’.”. (Id., ibid., p. 178)
Assim, se para Huizinga, a arte perde, por meio de um processo gradual, sua função vital na sociedade e se torna a ocupação de alguns indivíduos denominados “artistas”, assumindo um valor cultural independente e elevado, na reflexão de Gumbrecht, o que nos importa ressaltar é a possibilidade de pensar o estético fora de seu campo habitual, permitindo outras aplicações, no trabalho de compreensão das ciências humanas, ligadas a uma vivência comum a muitos em seus cotidianos, manifestamente nos modos de jogar, nos diferentes tipos de interação social através do jogo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

GUMBRECHT, Hans Ulrich. A Mídia Literatura. In: __________. Modernização dos Sentidos. São Paulo: Ed. 34, 1998.

GUMBRECHT, Hans Ulrich. É apenas um jogo: história da mídia, esporte e público. In: ______________. Corpo e Forma: ensaios para uma crítica não-hermenêutica. Org. João Cezar de Castro Rocha. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1998a.

GUMBRECHT, Hans Ulrich. Elogio da Beleza Atlética. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

GUMBRECHT, Hans Ulrich. A Forma da Violência. Folha de São Paulo, Caderno Mais! São Paulo, 11 de março 2001, Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs1103200105.htm, acesso em 26/02/2005.

HUIZINGA, Johan. Homo Ludens (1938). 5ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2004.




[1] Aluno do Programa de Especialização em Teoria e História Literária do Departamento de Estudos Lingüísticos e Literários da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia / Orientadora: Profª Drª Marília Librandi Rocha. Endereço para correspondência: Rua dos Prates, 159 – Iracema. Vitória da Conquista/BA – CEP: 45000-000. Fone: (77) 8105-5733. E-mail: ellnovo@yahoo.com.br.
[2] Professora Drª. de Teoria da Literatura do Departamento de Estudos Lingüísticos e Literários da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, Estrada do Bem Querer, Km 4, Vitória da Conquista, Ba, cep: 45083-900, e-mail: marilialibrandi@uol.com.br

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